Uma concepção existencial do educando como um ser reencarnado

Por Jackson de Castro

José Herculano Pires, filósofo espírita e educador brasileiro, diante do pressuposto dialético de que o “educando é um ser reencarnado”, surpreendeu até mesmo os próprios espíritas, que, embora estivessem acostumados às idéias reencarnacionistas, não haviam, até então, voltado seus olhares para as implicações pedagógicas de tal prerrogativa. Aliás, a própria idéia de reencarnação não é nova na história humana, pois encontramo-la já difundida por Pitágoras, que, a seu turno, foi fortemente influenciado pela teologia indiana dos Brâmanes. A própria maiêutica socrática somente se justifica pelo inatismo das idéias do intelocutor, que, sendo uma alma com experiências anteriores, por um processo dialético, poderia ter acesso a essas reminiscências; encontramos a justificação dessa idéia em Platão, Plotino e Porfírio.

O pressuposto básico de Herculano Pires é o de que o educando é um ser reencarnado, e não é uma tabula rasa. Traz, ao renascer para uma nova experiência física, uma gama de conhecimentos intelecto-morais que, mesmo adormecidos, podem ser trabalhados no processo educativo, a fim de que o educando consiga cumprir sua tarefa de auto-aperfeiçoamento que justifica a sua reencarnação. Não há tentativa de provar a existência metafísica do Espírito, mas sim, a preocupação desse ensaio é com as conseqüências pedagógicas que essa idéia de Herculano traz. Parte-se do conceito de existência em que Herculano chega a um conceito de interexistência, a fim de compreender as novas visões oferecidas pelo filósofo sobre o educando, o educador e o processo ensino-aprendizagem.

Mas a questão que se impõe aqui deve ter um certo grau de gravidade, que se não coloca cores berrantes no conjunto das pedagogias conhecidas, faz ao menos movimentos perturbatórios da nossa paz de pantanal a respeito da educação. Sendo, o educando, um Espírito reencarnado, deve isso mudar as possibilidades de ensino que, em última instância, deve respeitar-lhe o viés espiritual, e mais ainda o conjunto de experiências negativas e positivas que angariou ao longo de seu aprendizado fora dos domínios fenomenológicos da matéria. Contudo, dirão muitos, isso não passa de mera especulação metafísica, deve não merecer maiores considerações pedagógicas. Disso resulta a seguinte questão: “como comprovar a instância espiritual do homem?”. Isso não nos cabe, infelizmente, neste ensaio. Contudo, serve-nos como parâmetro de estudos mais aprofundados a respeito. O que pretendemos, fundamentalmente, é analisar o pensamento de José Herculano Pires, filósofo contemporâneo, sobre a educação no viés espírita. Para aqueles desejosos de se aprofundarem na pesquisa ontológica acerca da existência do Espírito, indicamos O Livro dos Médiuns, de Allan Kardec, e Fatos Espíritas, de William Crookes; dois verdadeiros tratados da fenomenologia das comunicações entre os dois planos da existência.

Herculano Pires foi, de alguma sorte, um dos iniciadores da Pedagogia Espírita. Nosso trabalho se pauta em sua obra em que lança a base de suas idéias educacionais: Pedagogia Espírita.

Se, o educando é um Espírito reencarnado, então, há muito a se pensar a respeito do processo educativo: a) as dimensões do homem se encerram no reconhecimento pelos outros do corpo humano – como queria Sartre em O Ser e o Nada? - ; b) como se dá então, o processo ensino-aprendizagem nessa perspectiva?; c) qual o papel da escola?; d) e o dos professores e alunos?. Enfim, muitas perguntas podem ser feitas sem que necessariamente encontremos a resposta, mas são, de alguma sorte, inevitáveis.

Nesse sentido, Pires (1985: 20), faz a seguinte alusão: “É evidente que as dimensões da educação decorrem das dimensões do homem. Se o homem pode ser encarado, tanto espiritual como socialmente, numa perspectiva de sucessões dimensionais, então o processo educativo também será susceptível dessa visualização”. José Herculano Pires, ao afirmar tal idéia, parece-nos, a primeira vista, não como uma novidade; entretanto, é forçoso considerar que, em nossos erros e acertos ao longo da História da Educação, parece que às vezes esquecemos da prerrogativa de que a educação é feita para o homem, e pelo homem se justifica; nesse caso, a pedagogia, que são as técnicas educativas, deve estar voltada para suprir as necessidades do educando em seu processo cognitivo.

Sobre isso, Herculano Pires (1985: 21) nos diz:

“A educação depende do conhecimento menor ou maior que o educador tenha de si mesmo. Porque conhecer-se a si mesmo é o primeiro passo do conhecimento do ser humano. A Humanidade é uma só. O ser humano em todas as épocas e em toda parte, foi sempre o mesmo. Sua constituição física, sua estrutura psicológica, a raça ou nacionalidade, de cor ou tamanho são apenas acidentais. Por isso, a Educação é universal e seus objetivos são os mesmos e, todas as épocas e em todas as latitudes da Terra”.


Com efeito, a educação é um processo meramente humano; com essas palavras, Herculano Pires também alerta sobre o preparo, por assim dizer, psicológico do educador. Ora, se a educação é um processo eminentemente humano e pelo homem se justifica, Herculano alerta que o conceito de existência que se tenha do homem interfere em muito na visão educacional da humanidade; daí ser o conceito de interexistência abordado por esse filósofo contemporâneo, um dos pontos centrais de suas idéias educacionais. Contudo, muito mais do que uma prerrogativa existencial, esse conceito guarda um profundo sentido pedagógico. Uma vez que existir, quer seja no plano material ou na esfera espiritual, representa um processo educativo, pois o ser somente justifica a sua existência pelo objetivo de auto-aperfeiçoar-se, desenvolvendo as suas mais diversas faculdades.

Ver-se-á que a proposta educacional de Herculano não se configura num método pedagógico, mas a sua grande contribuição é oferecer uma nova perspectiva sobre o educando, o educador e processo ensino-aprendizagem. Por consequência, o papel da escola será o de formadora de cidadãos ético-morais muito mais do que de cumpridora de currículos escolares.

A preocupação filosófica com a educação, sem dúvida, ocupa grande espaço na História da Filosofia, uma vez que trata não somente de uma pedagogia que dê conta do método educacional, mas da própria cultura que é repassada às gerações posteriores através do educar; vê-se, desde logo, que a educação é bem mais do que um processo de sala de aula, mas se estende para o conjunto de atividades sócio-culturais do indivíduo lançado na existência.

“A inquietação do pensamento atual, em busca de uma Filosofia da Educação que corresponda às exigências do mundo em transformação, resulta, não só do fato mesmo dessa transformação, como também da falta de unidade com respeito aos problemas a serem postos em questão” (PIRES, 1985:22).

Com efeito, percebemos que o processo de educar, do ponto de vista formal, decorre de teorias da educação, que vêem o homem de maneiras as mais diversas possíveis. Para uns, o homem é apenas uma máquina feita de matéria, para outros, é um ser divino com destinação fixada no além-túmulo; para o Espiritismo, porém, o homem não é outro senão um Espírito encarnado cujo destino é a felicidade segundo tenha agido. Daí observamos que uma teoria educacional não está separada do conceito de ser existente que se tenha do homem; conceito esse que parte da sua essência, ou seja, responde à pergunta: o que é o homem? Chegando ao conceito de existência humana, que para Herculano estaria assim posta essa resposta: a essência precede à existência. Embora a Filosofia Interexistencial de Herculano seja profundamente influenciada pelos filósofos considerados existencialistas como Sartre, Simone de Beauvoir, entre outros, a filosofia herculaniana possui características próprias, justamente por não se limitar ao campo da matéria para a análise da existência. O preceito supracitado revela um profundo sentido pedagógico, e, quando falamos em educação e pedagogia a partir da Filosofia Espírita da Educação, não entendemos apenas os processo cognitivo da aprendizagem formal, mas o sentido mais amplo do “pedagógico” no Espiritismo é a própria evolução do Espírito.

Hoje, a Parapsicologia vem nos alertar que o homem possui percepções extra-sensoriais, que expande seu campo perceptivo para além das esferas meramente físicas, que a própria sede da mente não estaria no cérebro, o que Descartes já falava. A própria reflexão filosófica do pensamento humano, não raras vezes, chegou à compreensão do homem como um ser não apenas material, nesse sentido destacamos Plotino, Agostinho, Pitágoras, etc.. Na Filosofia Espírita da Educação, representada no nosso trabalho pelo filósofo José Herculano Pires, é exatamente assim que se passa: o homem é um ser reencarnado, que possui em imanência, ao nascer, todo o conjunto de suas experiências pretéritas, intelecto-morais, com o intuito de continuar seu aperfeiçoamento. Se, o educando é realmente um Espírito encarnado, só isso já é o suficiente para mudarmos completamente a nossa forma de ver a educação. Se para alguns pensadores isso não é senão um assunto de metafísica, e, portanto, não merece atenção, para outros, como o professor francês Denizard Rivail, o escritor inglês Arhur Conan Doile, o cientista inglês Sir William Crookes e os filósofos José Herculano Pires e Ernesto Bozzano isso é tão lógico como o pensamento é um atributo do ser humano. Aliás, veremos que a Filosofia Espírita não cria tal conceito, que já existia desde mesmo a Filosofia Oriental, passando por Pitágoras, até chegar em Sócrates e Platão.

Se o homem não é só matéria, mas também é espírito, então estamos enveredando para o cominho que busca compreendê-lo em sua integralidade; essa é, sem contradita, uma das propostas centrais do Espiritismo: contribuir para uma compreensão integral do ser humano, extrapolando os círculos estreitos com as concepções materialistas de todos os tempos que o reduziram.

É necessário lembrar que a filosofia continua sendo um caminho essencial para se compreender a significação do mundo e do lugar que ocupamos nele; com efeito, a educação se impõe nesse processo de compreensão do mundo, bem como do próprio homem. As reflexões empreendidas pelos grandes pensadores – muitos dos quais são ignorados pela História – sempre serão o veículo a partir do qual abriremos caminho para as novas questões filosóficas que se apresentam em nosso tempo. Com o advento do Espiritismo, e sua publicação fundamental O Livro dos Espírito (1857), bem como a própria história do Espiritualismo, o mundo teve de voltar sua atenção ao problema do ser na existência não mais como um ser biológico apenas, mas também como um ser espiritual.

O momento atual da filosofia encara as concepções da Filosofia Espírita, com todas as contribuições que a dialética pode oferecer, porque a indiferença filosófica ao posicionamento dessa filosofia frente ao mundo, seria, no mínimo, uma atitude anti-dialética. O pensamento de Herculano segue exatamente o parâmetro do espírito iniciado pelo Espiritismo, contudo, ao refletir sobre as implicações pedagógicas deste novo paradigma, esse filósofo não espera com isso fazer proselitismo em favor da doutrina em que reconheceu um decisivo processo gnoseológico no desenvolvimento humano, a sua maior preocupação é com a evolução do ser e quais os aspectos que podem contribuir com essa evolução. Encerramos este trabalho transcrevendo uma frase de Herculano contida na obra Pedagogia Espírita, e que entendemos resumir a uma só vez o que é o aspecto educacional do Espiritismo: “Espiritismo é educação. Educação individual e educação em massa”.