Filosofia Espírita da Religião - Por Jackson de Castro


INTRODUÇÃO

Há uma extensa confusão epistemológica sobre a natureza do Espiritismo, tanto no meio espírita como no não-espírita. Para uns ele não é senão uma religião, para outros é uma filosofia, para terceiro, ele está fundamentado numa ciência des aspectos empíricos e psicológicos. No entanto, como diria José Herculano Pires1, todos estão errados sobre esse ponto, uma vez que um estudo mais acurado sobre as bases epistemológicas do Espiritismo revela que ele se apresenta como doutrina multifacetada, ou, para ser mais específico, possui três aspectos que formam seus postulados.

 
Numa explicação sumária sobre essa questão, podemos citar as palavras do próprio codificador do Espiritismo, Allan Kardec, ao afirmar o que se segue (1992):

O Espiritismo é ao mesmo tempo uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como Ciência prática, ele consiste nas relações que se podem estabelecer com os Espíritos; como filosofia, ele compreende todas as conseqüências morais que decorrem dessas relações. Pode-se defini-lo assim: O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, da origem e da destinação dos Espíritos, e das suas relações com o mundo corporal; (O que é o Espiritismo, Prólogo).








 




Na citação acima é possível perceber os aspectos científico e religioso do Espiritismo, mas Kardec, ainda não satisfeito com as especulações em torno de uma ciência nascente, e não querendo deixar margem para falsas idéias acerca da doutrina, se dedicará ainda à explicação do aspecto religioso do Espiritismo. Kardec explica que a Doutrina Espírita não pode ser chamada de religião no sentido vulgar a que se atribui a esta palavra, mas sim, como possuidor de uma orientação para uma religiosidade que eleva as práticas morais do estudioso sério, no sentido de resgatar os ensinos de Cristo e da necessidade da prática desses ensinos para a sociedade. O Espiritismo não promete a salvação e nem possui nenhum dos atributos rituais das religiões, por isso, se configura muito mais numa filosofia moral, que exalta a ética e a necessidade do bem, do que numa religião. O próprio Kardec nos diz:

Por que, pois, declaramos que o Espiritismo não é uma religião? Pela razão de que não há senão uma palavra para expressar duas idéias diferentes, e que, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto; que ela desperta exclusivamente uma idéia de forma, e que o Espiritismo não a tem. Se o Espiritismo se dissesse religião, o público não veria nele senão uma nova edição, uma variante, se assim nos quisermos expressar, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com um cortejo de hierarquias, de cerimônias e de privilégios; não o separaria das idéias de misticismo, e dos abusos contra os quais a opinião freqüentemente é levantada” O Espiritismo, não tendo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual da palavra, não se poderia, nem deveria se ornar de um título sobre o valor do qual, inevitavelmente, seria desprezado; eis porque ele se diz simplesmente: doutrina filosófica e moral”. (Revista Espírita, Dezembro de 1868).











 











   Podemos dizer, sem contradita, que o aspecto religioso do Espiritismo está manifestado em seus objetivos da seguinte forma: combate a incredulidade e suas funestas conseqüências, não sendo uma religião conduz às idéias religiosas, prova, através da ciência espírita a existência da alma e sua destinação, favorece ao auto-conhecimento do indivíduo que passa a observar mais os seus atos, alerta para o fato de que o que vale numa ação não é o ato em si mas a intenção que o produziu; entre outras idéias. O Espiritismo não impõe uma justificativa transcendente ao indivíduo para a necessidade de reformar-se moralmente; é uma necessidade imanente ao próprio ser a fim que se cumpram os seus desígnios de auto-aperfeiçoamento que justificam as diversas reencarnações a que é chamado a viver.

ESPIRITISMO: RELIGIÃO OU RELIGIOSIDADE

O Estudo comparado das religiões demonstra que, no fundo, os ensinamentos espirituais são semelhantes em todas as crenças no mundo. A diferença está na metodologia aplicada. A palavra religiosidade, do ponto de vista de algumas interpretações filosóficas, não está vinculada a uma determinada categoria ou modalidade de religião no sentido dogmático, e sim na convicção intuitiva de uma pessoa no mundo espiritual e na sua vivência pessoal e interior.
 
A palavra religião por sua vez, apresenta um serviço ou culto a Deus, ou a uma divindade qualquer, expresso por meio de ritos, preces e observâncias, as quais se considera mandamento divino. Tudo que é considerado a obrigação moral ou dever sagrado e indeclinável.
 
A religiosidade, todavia, consiste simplesmente na interação entre cada criatura humana e o seu Criador, sem a obrigatoriedade do concurso dessa ou daquela religião. Em outras palavras, a religiosidade pode ser a ligação do ser humano a Deus, através de duas diferentes maneiras:
 
Primeira opção – Em conformidade com os preceitos pertinentes a uma determinada religião.
 
Segunda opção – Sem a intermediação de nenhuma religião. Podendo ser desenvolvido estando o indivíduo presente nos mais variados meios, sejam esses científicos, filosóficos, artísticos ou quaisquer outros.
 
Um grande exemplo de religiosidade no meio científico ocorreu em meados de 1950 com  Albert Einstein. Einstein afirmara que um cientista podia, efetivamente, ser um homem religioso. Ele, por exemplo, acreditava em uma perspectiva “cósmica, não antropomórfica” de Deus. Apontava que o antropomorfismo era uma necessidade do homem comum para compreender a divindade.  O cientista iria por outro caminho, mais abstrato e menos sincrético, mas ambos (sujeito da multidão e sujeito de ciência) podiam ver-se irmanados ante a circunstância divina, através de um laço de religiosidade.
 
No tocante à Doutrina Espírita, observamos uma grande confusão por parte de certos espiritistas, uma vez que os mesmos confundem o processo de religiosidade espírita com  algo que eles denominam de Religião Espírita.
 
A religiosidade espírita é conseqüência do conhecimento, é uma manifestação interior e não exterior. Já a suposta Religião Espírita estaria estruturada com base em algumas características pertinentes a toda e qualquer religião, dentre essas características destacam-se:
 
- A tendência em sacralizar determinados locais;
 
- Estabelecimento de dias sagrados;
 
- Criação de práticas ritualísticas.
 
É importante também esclarecer que sem sombra de dúvidas o Espiritismo nunca foi anti-religioso, pois o próprio Kardec no Capitulo V, da parte 2ª do Livro dos Espíritos, define: "O essencial está em que o ensino dos Espíritos é eminentemente cristão; apóia-se na imortalidade da alma, nas penas e recompensas futuras, na justiça de Deus, no livre-arbítrio do homem, na moral do Cristo. Logo, não é anti-religioso." Portanto, a questão fundamental que se mostra a partir do próprio Kardec, não é nem mesmo o conceito de religião espírita, mas as conseqüências religiosas que a essência cristã do Espiritismo traz em seus postulados.
   
Entretanto, entre a Doutrina Espírita não ser anti-religiosa e ser uma religião constituída existe uma grande diferença. Para a Doutrina Espírita o conceito de religião é  algo natural, porque de acordo com os ensinamentos dos espíritos, “Deus está na Natureza e no homem, que pode descobri-lo através da razão”.  A fé de acordo com o pensamento espírita, não é  algo que pode ser estabelecido de uma forma cega, pois a mesma deve ser sempre iluminada pela luz da razão, e Kardec deixa bem claro essa questão, quando diz que “o argumento supremo deve ser a razão”, na pág. 493 de “O Livro dos Espíritos”.

  
Para os espíritas a religião natural é a única que realmente satisfaz a razão, porque é uma inerência da alma humana, porque Deus está na Natureza em suas Leis perfeitas. A religiosidade espírita não depende de formalidades, mas sim, de moralidade. Nada de religiosismos e tantos outros “ismos” que andam por aí... O Espiritismo não é ritualista e nem muito menos sincretista, não tem corpo sacerdotal e não adota e nem usa em suas reuniões e em suas práticas: altares, imagens, andores, velas, procissões, sacramentos, concessões de indulgências, paramentos, bebidas alcoólicas ou alucinógenas, incenso, fumo, talismãs, amuletos, horóscopos, cartomantes, pirâmides, cristais, búzios ou quaisquer outros objetos, rituais ou formas de culto exterior. O Espiritismo é uma doutrina que possui em sua estrutura três aspectos: filosófico, científico e religioso. Por isso é comum o termo Doutrina Espírita.
 
Em suma a religiosidade Espírita é algo inerente à condição espiritual do homem e pode ser intensificada através de um processo de esclarecimento em torno dos preceitos doutrinários e da prática moral em torno das Leis Divinas, enquanto a religião no sentido convencional é obra do homem.

ESPIRITISMO COMO RELIGIÃO NATURAL

No Espiritismo a Religião é natural porque “Deus está na Natureza e no homem, que pode descobri-lo através da razão”. A fé não é cega porque é iluminada pela luz da razão, e Kardec deixa bem claro essa questão fundamental, quando diz que “o argumento supremo deve ser a razão”, na pág. 493 de “O Livro dos Espíritos”. Segundo Kardec o Espiritismo foi chamado a desempenhar um papel imenso na Terra. Reformará a legislação tantas vezes contrária às leis divinas; retificará os erros da História; restaurará a religião do Cristo, instituirá a verdadeira religião, a religião natural, a que parte do coração e vai direto a Deus.

 
Quando se fala em “restaurar a verdadeira religião”, normalmente se pensa no movimento espírita, que o Espiritismo é o futuro das religiões, como se fosse engoli-las todas; restaurar a verdadeira religião é levar a compreensão aos homens da imanência das suas faculdades espirituais e, portanto, religiosas, em outras palavras, a religião natural: aquela preconizada por Cristo e que os homens ao longo dos séculos a desnaturaram para buscar na conduta exterior e não na reforma de si mesmos, o cumprimento das leis divinas.
 
Em diversas outras passagens do corpo doutrinário organizado por Kardec, encontraremos alusões feitas pelos espíritos superiores como também do próprio codificador, a respeito da religião convencional, como também a respeito do sentido do espiritismo na sua significação religiosa. Dentre essas citações, destacamos:
 
"(...) o Espiritismo se fundamenta em princípios gerais independentes de toda questão dogmática. É verdade que ele tem conseqüências morais, como todas as ciências filosóficas. Suas conseqüências são no sentido do cristianismo, porque é este, de todas as doutrinas, a mais esclarecida, a mais pura, razão por que, de todas as seitas religiosas do mundo, são as cristãs as mais aptas a compreendê-lo em sua verdadeira essência. O Espiritismo não é pois uma religião. Do contrário teria seu culto, seus templos, seus ministros. Sem dúvida cada um pode transformar suas opiniões numa religião, interpretar à vontade as religiões conhecidas; mas daí à constituição de uma nova igreja há uma grande distância e penso que seria imprudente seguir tal idéia. Em resumo, o Espiritismo ocupa-se da observação dos fatos e não das particularidades desta ou daquela crença; da pesquisa das causas, da explicação que os fatos podem dar nos fenômeno conhecidos, tanto na ordem moral quanto na ordem física, e não impõe nenhum culto aos seus partidários(...)" ( Revista Espírita - Volume 2 - 1859 - Refutação de um artigo de "L'Univers").



















  

Ao aprofundarmos o estudo das bases epistemológicas do Espiritismo, e pelo exposto acima, é possível perceber que a doutrina independe de qualquer forma de culto, não aconselhando nenhum e não se preocupando com dogmas particulares, não constitui uma religião especial, pois não possui nem sacerdotes nem templos. Aos que lhe perguntam se fazem bem em seguir tal ou tal prática, apenas responde; "Se sua consciência aprova o que você faz, faça-o: Deus sempre considera a intenção". Numa palavra, o Espiritismo nada impõe a ninguém. Não se destina aos que tem fé, e a quem esta fé é suficiente, mas à numerosa classe de inseguros e dos incrédulos. Não os afasta da Igreja, porquanto já estão dela moralmente afastados, de modo total ou parcial, mas os leva a fazer três quartos do caminho para nela entrarem; cabe à Igreja fazer o resto.

 
Essas considerações são importantes, sobretudo para a compreensão do Espiritismo não como uma doutrina que espera arrebanhar prosélitos, uma vez que o seu objetivo é levar o indivíduo a pensar em sua própria divindade, ou, em outras palavras, em sua própria religiosidade. O Espiritismo não diz aos que procuram estudá-lo que somente conseguirão ser felizes se passarem a freqüentar as casas espíritas, mas antes lhes lembrar dos ensinos do Cristo, e lhes faz, a partir da reflexão sobre o fato do Cristo não querer fundar uma religião, mas sim uma religiosidade que pudesse orientar o homem em sua prática moral, com percebem que a sua felicidade não está no exterior, mas sim no interior.


 Na análise que Kardec faz sobre a incredulidade entre as pessoas, a contradição existente entre certas crenças religiosas e as leis naturais fez a maioria dos incrédulos, cujo número aumenta à medida que se populariza o conhecimento dessas leis. Se fosse impossível o acordo entre a ciência e a religião, não haveria religião possível. Proclamamos altamente a possibilidade e a necessidade desse acordo porque, em nossa opinião, a ciência e a religião são irmãs para a maior glória de Deus e se devem completar reciprocamente, em vez de se desmentirem mutuamente. Estender-se-ão as mãos, quando a ciência não vir na religião nada de incompatível com os fatos demonstrados e a religião não mais tiver que temer a demonstração dos fatos.

 
Pelas revelações das leis que regem as relações entre o mundo visível e o invisível, o Espiritismo será o traço de união que lhes permitirá olhar-se face a face, uma sem rir, a outra sem tremer. É pela concordância da fé e da razão que diariamente tantos incrédulos são trazidos a Deus.
CONCLUSÃO
O aspecto religioso do Espiritismo perpassa por todas as cinco obras que compõem a base doutrinária codificada por Allan Kardec; a aliança entre os três aspectos da doutrina não é feita ao acaso, mas é uma indicação, um resumo que alerta para o processo gnosiológico da humanidade. A proposta de Kardec, e os espíritos superiores a corroboram, é que Ciência, Filosofia e Religião, que seriam, de forma sintética, o resumo dos conhecimentos humanos, devem unir-se com o objetivo de contribuição mútua para a construção do conhecimento, e não disputarem a verdade somente para si. Na obra espírita é possível perceber a harmonia com que esses três aspectos se relacionam sem solução de continuidade, o que indica ser plenamente possível essas relações do plano do conhecimento humano.
A religião espírita, ou antes, o aspecto religioso do Espiritismo, é uma religião psíquica, imanente, como a chamou Cona Doyle. Kardec afirma na conclusão de O Livro dos Espíritos: O Espiritismo é forte porque se apóia nas próprias bases da religião: Deus, a alma, as penas e recompensas futuras; no entanto, no Espiritismo, as penas e recompensas presentes e futuras não são transcendentes ao homem, como um destino que lhe traçasse sua vida; não; na concepção espírita é o próprio indivíduo que constrói-se a si mesmo, experimentando a felicidade quando colhe o bem e a infelicidade quando colhe o mal. Esses preceitos são decisivos para o auto-conhecimento do homem, e para o reconhecimento em si mesmo de sua divindade.
REFERÊNCIAS:
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de José Herculano Pires. 59º ed. São Paulo: LAKE, 1998.
KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. Tradução de Wallace Leal V. Rodrigues. 24º ed. São Paulo: LAKE, 1992.
KARDEC, Allan. Revista Espírita: edição de Maio de 1859. Tradução de Salvador Gentile. 1º ed. São Paulo: IDE, 1993.
KARDEC, Allan. Revista Espírita: edição de 1868. Tradução de Salvador Gentile. 1º ed. São Paulo: IDE, 1993.
1 Filósofo brasileiro contemporâneo, que escreveu mais de oitenta livros de Filosofia, História, Parapsicologia e Espiritismo.